segunda-feira, 16 de agosto de 2010

O velho Pescador

Toda vez que eu ia para aquela região do litoral eu encontrava entre tantas pessoas um amigo meu (cujo nome em respeito a ele vou omitir) que era da minha cidade no interior de São Paulo, e que nessa época morava lá com sua mulher para fugir das tensões das cidades grandes.
Aquela era basicamente uma vila de antigos pescadores que cresceu um pouco de mais, mas ainda trazia paz, mar limpo, vida boa.
Ficava hospedado na casa deles, e as férias, que eu contava nos dias quando viriam, eram sempre ótimas e engraçadas.
Tínhamos uma turma de pessoas da nossa idade, homens, mulheres, casados, solteiros, e nessas temporadas as tardes eram pra gente se divertir e esquecer de tudo que a vida comum nos reservava a frente.

Houve um dia quando o tempo estava meio estranho apesar do Sol ainda brilhar, quando resolvemos pegar um barquinho de madeira com um motor e ir ver uma pequena ilha que havia a frente.
Muita gente fazia isso, e a ilha era linda apesar de longe, valendo a pena ser vista, pois além da geografia natural e suas pequenas cachoeiras, era de certa forma preservada pelo povo da vila, sem latinhas de cerveja e porcarias na areia.
Era fim de tarde e pegamos o barco rumando para lá.
Chegamos, e sentindo a natureza mais pura, mais de perto percebemos Deus de uma forma difícil de se perceber no centro de São Paulo. Ele estava ali, em tudo, em cada grão de areia.
Andamos, escalamos, comparamos tudo aquilo com a cidade grande, e depois de muito tempo, já ao anoitecer resolvemos voltar.
O tempo estava mudando, e pelo que sabíamos, ele poderia virar de repente, pois isso era comum naquela região.
Ao ligar o motor do barco, perguntei a meu amigo se dava mesmo para sair.
O céu tava escurecendo rápido, e as nuvens pesadas. Uma chuva fina começava a cair...
Ele respondeu que tudo bem, que era melhor ir agora do que ficarmos ilhados até o outro dia, sem provisões e sem nem uma caixa de fósforos para acender uma fogueira (caso a chuva deixasse).

No meio do caminho o tempo virou, o mar se revoltou e na revolta da natureza o barco acabou se esborrachando numas rochas que o transformaram em destroços.
Meu amigo sofreu uma pancada na cabeça muito forte e sangrava muito. Eu estava bem, mas a gente só não se afogava porque se apegava ao maior destroço de madeira do barco que conseguimos alcançar.
Lá na praia nossos amigos avisaram a guarda costeira porque já sendo noite não havíamos ainda voltado.E eles, mesmo no mar revolto, chegando à ilha não encontraram ninguém.
Percorreram o caminho básico de volta e também não acharam nada.
As correntezas tinham nos arrastado pra sei lá eu que ponto de onde deveríamos estar.
Horas se passaram, e meu amigo ficava cada vez pior.
Eu estava péssimo, o mar gelado, a chuva ofuscando tudo que a noite mal permitia enxergar, mas, sempre lhe dizia que estava tudo bem.
Alguém na praia já deveria ter chamado a guarda costeira, e logo seríamos salvos repetia para ele.

Percebia que a correnteza nos levava cada vez mais para longe do caminho de volta, mas não podia dizer isso, pois seu corpo ia ficando fraco a ponto de eu pensar em amarrá-lo. Mas não tinha com que. Só pedia que se segurasse como pudesse que o resgate com certeza estava vindo.
Mas não estava.
O barco da guarda costeira não tinha a menor noção da nossa posição.
Procuravam no escuro, e nós estávamos perdidos, no mar, na escuridão da noite.
Foi quando vi alguma coisa na minha frente, algo assim como milhões de plânctons causando uma tênue luz, e em seguida num flash não estava mais ali, mas sim na minha casa.

Um velho pescador de barbas e cabelos brancos, rosto curtido pelo tempo, ia à frente e dizia:
-         Vai, pega um foguete sinalizador. Rápido.
Quem era esse ancião estranho, como sabia que tinha alguns foguetes sinalizadores frutos de uma viagem antiga?
Fiquei meio parado. Como estava ali?
Meu cérebro estava confuso.

Ele insistiu:
-         Não posso te manter muito tempo aqui. Você tem que voltar. Pega logo esse sinalizador porque eu não posso pegá-lo. Só você pode.

Ia falar algo, mas instintivamente corri para uma gaveta e peguei um foguete.
Quando me vi de novo, numa fração de segundo, estava lá, ao lado do meu amigo segurando o que sobrara do barco para afundar.
Mas na minha mão direita havia o sinalizador.
Perguntei pra ele, meio zonzo, sem entender nada do que havia acontecido, se tinha percebido que eu havia sumido por um tempo.
Ele riu, disse que eu estava delirando e que não tinha saído dali.

Novamente, instintivamente acionei o sinalizador que disparou duas bolas de fogo que brilharam sobre nossas cabeças e de lá do alto caíram no mar ainda em chamas, uma de cada lado do que sobrara do barco.
Ele assustado perguntou o que eu havia feito, onde arranjara aquilo, mas eu via que ao mesmo tempo ele mal conseguia se segurar, e eu não tinha tempo para responder, pois já estava imaginando que teria que pegar seu corpo na água e tentar nos manter vivos como pudesse.
Minutos depois uma luz forte bate sobre nossos olhos. Depois, aquele apito grave tão conhecido dos barcos da guarda costeira. Estávamos salvos.

Já dentro da lancha, meu amigo foi levado para um atendimento de emergência, e eu, enrolado num cobertor conversei com um policial da guarda. Ele me perguntava o que acontecera.
Expliquei tudo, mas quando chegou na hora de explicar como consegui o foguete sinalizador, parei, e só disse que havia acionado-o, sem dizer como ele veio parar em minhas mãos.
Ele estranhando perguntou como que já que eu tinha um sinalizador, havia esperado horas para acionar a ponto de por em risco a vida do meu amigo.
E mais, perguntou como, se estávamos somente de shorts e sem camisa, e o barco era simples, sem lugar para nada especial, eu podia ter na mão um sinalizador?
Disse entender que estes foguetes se acionam com um apertar de botão, ou seja, eletronicamente, sem se precisar de fósforos e mesmo com chuva e tudo o mais. A questão é como eu tinha um desses na mão numa situação daquelas, e, se tinha, porque não acionei antes.
Disse para ele que não sabia, estava zonzo, não sabia muito, só que tinha acionado.
Ele sorriu estranhamente, se calou, e fomos rumo a capitania dos portos da região.

Lá, sem ter mais visto meu amigo, fui levado ao comandante, que junto a um escrivão me pediu para fazer o depoimento do que havia acontecido.
Ele era um senhor que estava na casa dos 60, uniforme da marinha, olhos bondosos e cabelos brancos.
Primeiro pediu que contasse minha versão sem que fosse escrita.
Contei exatamente o que havia contado antes.
Ele coçou a cabeça, pensou um pouco e pediu para o escrivão se retirar.
Ai, olhando nos meus olhos disse:
-         Filho conte-me tudo, a verdade, por mais estranha que te pareça.
Olhei para ele, meus olhos mareados de lágrimas e perguntei o óbvio, dada a tanta atenção dispensada a este caso. Perguntei se meu amigo tinha morrido.
Ele me olhou devagar, e fez sinal que sim.
Comecei a chorar. Não conseguia segurar.

Ele veio do meu lado, colocou a mão em meu ombro, e falou:
-         Você não tem culpa. Ao contrário. Foi um herói. Mas agora me conta tudo. Mesmo que ache que seja difícil de se acreditar.

E eu contei.
Não agüentava mais aquilo tudo somente comigo. Falei do velho pescador, falei do tele-transporte, falei tudo.
Disse que não estava louco. Que aquilo tinha acontecido. Era fato. Eu não tinha nenhum sinalizador comigo. Como apareceu um em minha mão? Disse que tinha três em casa e garantia que se fossemos lá agora só teriam dois.
Novamente ele me olhou com seus olhos cansados e perguntou o que eu imaginava que havia acontecido.
-         Não sei, talvez esse velho pescador fosse uma pessoa paranormal aqui da vila, que percebeu o incidente e conseguiu me transportar para casa para pegar o sinalizador, talvez seja um caso parapsicológico raro, não sei. Talvez seja isso.
-         Eu, disse ele, tenho plena certeza do que aconteceu, mas não é bem isso. Você vai descobrir quando for a hora.
Por enquanto, se concordar colocaremos no relatório que no meio do caos alguém em algum lugar ali perto disparou um sinalizador, e graças a isso vocês foram resgatados. Ninguém sabe quem foi.
Digo isso porque se citarmos casos paranormais ou coisas assim, dado que seu amigo está morto, bom... Não vai ser boa idéia. Certo?
Pensei naquilo, concordei, o escrivão voltou, o texto foi feito e tudo ficou resolvido.

No dia seguinte, no enterro do meu amigo, depois de tudo, depois de me sentir culpado por encarar sua mulher estando eu vivo e ele morto, depois das lágrimas secarem, comecei a andar pelo pequenino cemitério.
Notei um túmulo diferente, cheio de flores, que destoava de todos os outros pelo carinho que pareciam depositar nele.
Fiquei curioso e fui até ele.
Além das flores e mais flores haviam fotografias ampliadas em quadros, e a foto estampada na lápide.
Comecei a tremer de emoção.
Ali estava o velho pescador que me ajudou.
Não havia dúvida.
As fotografias antigas emolduradas e ampliadas, a foto na lápide, nada disso deixava dúvidas de que o velho pescador que me salvou havia morrido a mais de 40 anos atrás.

Sai correndo dali para a capitania. Encontrei o capitão no corredor. Disse descontrolado:
-         Preciso falar com o senhor!
Ele calmamente respondeu:
-         Eu estava te esperando.
Em sua sala, ele me contou:
-         Ele era um velho pescador que morreu a muito tempo.
Num dia turbulento como aquele em que você o encontrou, ele desapareceu e seu corpo só foi encontrado às margens da praia, longe daqui, dois dias depois.
Seu rosto estava sereno, seu corpo já duro mantinha a mão direita fechada.
Dizem que foi difícil abri-la, mas ao conseguirem, viram dentro dela um crucifixo lindo, em ouro, que foi enterrado junto a ele.
De homem Deus fez dele um anjo, e ele guarda essas praias.
Às vezes, ninguém sabe bem porque, em noites revoltas ele intercede por alguém que necessita de salvação. Ele fez isso por você.
Saindo do edifício eu entendi porque o capitão parecera encerrar o caso tão rápido. Na verdade eu ainda estava sob investigação, afinal, havia uma morte no episódio.
Ele inteligentemente não me disse nada e esperou. Nesse momento, quando voltei, ele teve a certeza de que o caso estava encerrado. Pois ele cria, ele sabia.
Descendo as escadas dois guardas, um homem e uma mulher, novos, uns 25 anos me abordaram. A moça disse:
-         O que você explicou no começo era completamente diferente do que ficou registrado no fim. Então a gente, não todos nós, apenas alguns de nós tivemos certeza do realmente havia acontecido.
O Velho Pescador te deu mais uma chance. Aproveite-a..

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