terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Abismos...

Sempre tive o poder de andar ao redor de abismos e não cair.
Mas sempre soube que quando esse poder falhasse, a queda seria fatal.
Corria o risco.
Um dia a muito tempo atrás, conheci uma mulher.
Sai pela rua na madrugada, perigosamente exposto à tudo.
Tanta coisa podia acontecer, mas não queria nem saber.
Andando pela noite, fumando um cigarro, ela me chamou.
-Tem um ai prá mim? disse.
Podia ser assaltante, golpista, ou bandida qualquer, porque hoje não dá para se medir mau caráter pela roupa que se usa.
Mas, ela era uma mulher da rua.
Parei, puxei meu maço e lhe ofereci um.
Acendi.
Estava indo embora e ela me chamou:
- Porque não fuma aqui comigo?
Sentamos embaixo de uma ponte.
Ela estava horrivelmente vestida, talvez entupida de crack ou alcool, não sabia ao certo.
Mas e dai?
Do nada ela me olhou e percebi seus olhos marejados de lágrimas.
Ela me contou enquanto os carros zuniam pela avenida, que um dia teve vida.
Disse: - Mas você ainda tem. está viva.
Ela respondeu: - Não. Estou morta.
Perguntei porque e então ouvi sua história:
Tinha casado, tido uma filha, era de classe média e vivia até que bem.
O marido a traiu declaradamente e acabou com o casamento.
Mesmo assim ela se levantou, andou, seguiu e encontrou outra pessoa.
Levaram 5 anos para ficarem juntos, mas quando aconteceu, quase um ano depois,a professora da escola da menina a alertou que algo estava errado. Ela foi investigar, e soube que a filha estava sendo estuprada pelo padastro. A criança tinha 12 anos.
Ao invés de fugir, ela voltou para casa. Preparou um jantar de primeira, e saboreou ao ver o marido atual cair envenenado no chão.
Não chamou a policia de imediato.
Esperou ter certeza de que ele estava morto mesmo.
Dai ligou o 190.
Foi presa, julgada e condenada.
A menina ficou com os avós enquanto ela cumpria seu tempo de prisão.
Teve redução de pena por bom comportamento e saiu muito mais rápido do que se imaginava.
Voltou procurando a filha e soube que os avós, doentes a haviam dado, pois pelo tempo que a mãe fora condenada não poderiam tê-la mantido. Tentou achá-los mas não conseguiu. Nem sabia se estavam vivos.
A dor foi tanta, tentou a morte, errou, e acabou na rua.
E estava esperando o dia que tudo acabasse. Que pudesse dormir em paz. Lá onde só se chega de um jeito e não se consegue voltar nunca.
Era uma mulher linda, e a maneira como contava dava para ver que tinha cultura. Aquela que não se costuma ensinar nas escolas públicas.

Quando levantei, me despedi e estava saindo, noite adentro, ela me chamou pela ultima vez.
Chegou até mim e pôs algo no meu bolso.
Era um maço de cigarros.
Sorriu e foi andando até desaparecer sob as luzes da avenida.
Nunca mais soube dela.
Mas sabia,
que naquela noite tão estranha,
não era um cigarro o que ela queria.
Coisas da noite.
Coisas do mundo.










Um comentário:

  1. É... Com certeza naquela noite ela teve uns dos instantes mais bem vividos dela. Afinal em apenas um cigarro ela teve a oportunidade de reviver a tua história, teve alguém que soube ouvi-la.

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