sexta-feira, 14 de maio de 2010

O Avião


Depois que você foi embora,
teus pais  de mudança,
o carro indo pela rua na qual tanto brincávamos,
eu fiquei muito triste.
Na minha cabeça eu via aquela cena:
O carro indo e você me acenando pelo vidro de trás.
E ai... na distância... o carro e você sumiam...

Isso foi quando tinha dez anos e você onze.
mas lembra?
Nos conhecemos quando você tinha nove e eu oito.

Eu era aquele que não sabia jogar futebol, não brincava de trocar ou bater figurinhas, não andava em "trópinha".
Você era aquela menina linda que não se dava com ninguém, porque as meninas viviam te avacalhando,
tentando achar um defeito em você.
Éramos deslocados, e só podíamos mesmo nos encontrar.

Naquele dia eu estava com fome,
todo mundo comia na cantina da escola, mas eu nem pensava nisso.

Minha mãe costumava me dar um lanche de pão com doce de abóbora,
que eu detestava mas não tinha coragem de dizer.
No recreio, jogava fora e ficava sem comer.

Ai ao lado daquela árvore onde eu sempre ficava até o sinal soar, vi uma coisa que me abalou:
Um saquinho de salgadinhos inteirinho, fechadinho.
Não tinha dono, não tinha ninguém.

Esperei e nada.
Ele estava ali me chamando e abandonado.
Peguei, perguntei para algumas pessoas à volta mas ninguém sabia.
- Alguém esqueceu, diziam.
- E o que eu faço com isso? perguntava.
- Vai deixar estragar? Coma ou dê para nós, respondiam.
Como realmente não havia dono provável, resolvi (e estava louco pra isso) comer o petisco.
No meio da minha festa, apareceu você.
Faltavam cinco minutos para o sinal, lembra?
Me olhou e disse:
- Está gostoso?
- Tá, quer dividir comigo? Achei aqui e não tinha dono. Estava lacrado. Pode pegar.
E comemos juntos, até a hora do sinal quando você me disse:
- Adorei dividir meu salgadinho com você. Eu tinha esquecido aqui e ao voltar para buscar te encontrei com ele.
Foi muito legal.
Isso selou nossa amizade para sempre.

Dia após dia no recreio a gente  ficava a beira daquela árvore conversando.
Você até comia meu pão com doce de abóbora e dizia que era uma delicia
(sempre achei que mentia. Como alguém pode gostar de doce de abóbora?).

Dai eu em casa brincando com um aviãozinho de plástico que tinha acabado de ganhar,
num sábado, vem minha mãe e diz:
- Filho, sua amiga está de mudança.
O pai dela foi transferido às pressas para uma unidade da firma em outro estado, e estão indo embora hoje.
Isso era de manhã.
Nunca tinha ido a tua casa.
Não conhecia teus pais.
Fiquei de plantão na rua o dia todo, olhando o carro de vocês na garagem.
Até a hora que ele saiu.
Percebi claramente a dor que sentíamos juntos pela separação.
Mas éramos crianças. Não tínhamos peso na questão.
Vi o carro dos teus pais sumir na rua e você me dando tchau pelo vidro de trás.

Algum tempo passou e eu não acreditava. Mas era assim.
Como quando meu pai morreu e minha mãe disse que ele tinha ido para o céu.
Não entendia e o esperava todo dia no portão.
Até perceber que não viria mais.

Decidi que dessa vez ia ser diferente.
meu tio dizia que era legal  eu ter nascido no dia em que nasceu Santos Dumont e  também no dia em que o homem pisou pela primeira vez na Lua.
Eu sempre adorei aviões, então resolvi fazer o meu e ir te visitar, afinal, em uma semana seria teu aniversário.


Fui para o quintal,
Juntei um monte de cacarecos, caixas, coisas que encontrava, e comecei a construir.
Tinha um outro tio que morava na frente e consertava rádios.
Peguei umas válvulas queimadas que ele rindo me deu.

Juntei tudo,
planejei em papel,
montei e com papelão de caixas, madeira, hélice de ventilador de teto achado na rua,  válvulas queimadas, e peças de eletrodomésticos estragados fiz meu avião.
Era lindo!

Entrei dentro e fui te encontrar.
Só, que ele não saia do lugar.
Minha mãe olhava da cozinha e sorria.
Me trazia copos de suco de laranja, pois afinal trabalhadores tem que se alimentar.
Mas meu avião não voava.
Onde havia errado nos planos?

Teu aniversário era naquele dia.
- Filho vem dormir!
- Já vou mãe. Só mais um pouquinho!
- Tá, 20 minutos. Vou ver o final da novela e depois só amanhã.
Ela não entendia que não tinha amanhã.


Quando estava quase certo de que aquilo não sairia mesmo do quintal,
Luzes piscando como mil vaga-lumes circundaram meu avião.

Estranhei mas só me veio na cabeça dar a partida de novo.

Apertei o botão  de liga/desliga de um liquidificador velho e que não ligava nada a lugar nenhum, apenas espetado numa placa de madeira.
E ele lentamente, magicamente, se elevou no ar.
A nuvem brilhante continuava a me levar...
E eu subi.
Lá em cima percebi que faltou colocar combustível (nem tinha pensado nisso), e esses vaga-lumes eram a energia que me levava, eu aceitei e sequer pensei no que poderia ser aquilo.

Meu avião voou, me levando rumo à minha amiga.
Vi as luzes da cidade,
vi a Lua linda no céu,
Vi o mundo correndo abaixo de mim, numa beleza sem fim.
Queria pilotar, mas as luzes piscantes, os vaga-lumes, me levavam.

O controle era deles, me conduziam.
Não sabia por quais caminhos, mas sabia que voava.
Era o que importava.

Estava feliz!
meu avião voou.

Meu avião voava.
Ia rever minha amiga!
O que mais alguém poderia querer?

Então,
A velocidade diminuiu.
Numa curva o avião desceu e pousou, ao lado de um quintal.
Ali havia uma festa.
Churrasco e tudo mais.
Percebi que era a comemoração do teu aniversário.
Fiquei sem graça.
Piloto veterano, sai do avião e fiquei só olhando.
A nuvem brilhante que envolvia o avião parecia dizer: Vai!

Lá dentro, pessoas rindo, se divertindo... Quis voltar.
Não era meu lugar, pensei.
Pulei no avião mas ele não levantava voo.
Apertei o botão do liquidificador e nada.
Mexi numas válvulas e tudo ficava igual.
E a nuvem linda e estranha que brilhava incessante continuava em volta.



Então percebi algo que me estarreceu.
Você estava vindo, atravessou o jardim, abriu o portão e foi chegando.
Não pude ignorar um pouco da nuvem do meu combustível mágico farfalhando ao teu redor.
Você vinha então brilhante, e chegou sorrindo até mim.
Lembra?

- Meu piloto corajoso, sabia que viria!
e eu respondi atônito:
- Eu não. Só soube agora que estaria aqui.
Você sorriu, dizendo: Que bom que veio!
Tremendo, peguei uma coisa no meu bolso e te entregando disse:
- Esse é meu presente.

Você olhou aquela pena linda que achamos juntos e nunca soubemos de que ave era,
e que um dia você disse que seria minha,
e então novamente sorriu:
- Obrigado amigo! É o melhor presente que hoje recebi.
Tímido, sem ação, disse:
-Bom, tenho q ir. Meu combustível está acabando.
E você respondeu:
- Vai amigo. Vai mas nunca deixe de estar aqui.

Beijou meu rosto e continuou:
- Só saio daqui quando ver essa geringonça voar. Vai meu destemido piloto. Voe!
Num repente me voltei e beijei teu rosto dizendo:
- Eu vou, mas eu volto.
E você:
- eu sei.

Entrei no meu bólido voador, e antes de sair você  complementou:
- Mas melhora o avião, viu?
Rimos... enquanto apertava o botão do liquidificador e a nuvem brilhante me elevava aos céus.

Já no quintal de casa, nem um minuto depois minha mãe me chamou:
- Vamos amor! A novela acabou. Trato é trato.
E fui dormir.
Acordando para a realidade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário