sábado, 11 de dezembro de 2010

Nunca peça balas no Natal

Modo estranho de dar boas vindas o desse Papai Noel.
Ele e três anõezinhos maiores que eu.
Não fosse o tamanho, estariam perfeitos (as crianças haviam adorado).
Não fosse a metralhadora na mão, o Noel seria o ideal.
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Tudo muito bonito, ele lá na frente do portão distribuindo balas prá toda gente que passava e tocando seu sininho como um doido.
Alguém ouviu. Sentiu.Viu.Uma das crianças que correu e contou para as outras.
Foram, aliás voaram  até ele para ganharem uns doces.
De repente, estavam dentro de casa o Noel e seus três estranhos anões.
- Vamos mostrar o Papai Noel para o papai!  Gritava meu filho mais velho de 5 anos.


De início até achei engraçado, afinal, aqueles representantes do natal americanizado conseguiram distrair meus filhos fazendo-os esquecer um pouco a mãe que se fora.
Estavam na minha sala, convidei-os a tomarem uns drinks e tomaram. Tomaram. Como bebiam aqueles caras...


Em dada hora o Noel exclamou:
- E agoooora! Vamos ver o que temos para a familia feliz!
E ví.
No início pensei que fosse brincadeira, afinal, hoje em dia eles imitam tudo muito bem.
Mas depois... quando meu gato caiu fulminado com uma bala percebi que tudo estava errado (além do bichano estar ali 'a meia noite e não na gandaia).
O revólver de um dos "anõezinhos gigantes" ainda fumegava, com silenciador e tudo.


Ao verem o gato chumbado no chão as crianças correram até mim e chorando me abraçaram.
- Papai faça algo! Era o mais velho dos três que pedia, na época com 5 anos.
Três revolveres e uma metralhadora apontados para nós e ele queria que fizesse alguma coisa.
Fiz. Comecei a tremer heroicamente. Uma bala foi o que o gato ganhou, e nem colocou uma meia no prego da porta.


O Noel gritou:
- Fiquem quietinhos e ninguém vai morrer. O gato foi somente um exemplo.
Bom, já era um ótimo início de papo.


- O que vocês querem afinal? Arrisquei dizer.
- Cala a boca animal!
Bom, já era um ótimo fim de papo.


Então, cada pseudo-anão agarrou uma criança, e não sei se bravos soldados ou mudos de medo, pararam de chorar.


- As crianças não! Levem tudo daqui, façam o que quiserem comigo, mas por favor, deixem-nas em paz! Pedi, implorei, exclamei, nos bons termos de frases chavão de filmes americanos.


- Quieto palhaço! Ou estouro a cabeça de vocês quatro. Cuspiu o Noel na minha cara, nos bons termos de frases chavão de filmes brasileiros.


E me virando de costas para as crianças, com a metranca no meu nariz, disse com toda a cordialidade que lhe era peculiar:
- Acontece que meus anõezinhos cresceram um pouco demais, como pode ver. Você sabe, ninguém vai gostar disso. Dai então que preciso de três novos anões. Entendeu?


Não entendi no momento (é que eu ainda não sabia) mas fiz que sim pois estava claro que para ele não interessava muito o fato de eu haver entendido ou não; quando alguém vindo por trás sufocou-me com um pano embebido em sei lá o que...


Eram duas horas da manhã de Natal quando acordei com uma terrível dor de cabeça.
Estava só.
Nem Noel, nem estranhos anões, nem meus 3 filhos.


Dor, dor imensa. Dor que corroía feito ácido circulando por minhas veias. Dor que me destruia por ter perdido tudo sem nem saber porque.


Sequestro? Mercado negro de crianças? Terrorismo? Vingança? Loucura? Tara? Tudo me passou pela cabeça (é que eu ainda não sabia).
Desmaiei.


Depois, de voltar da delegacia, ter feito ocorrência policial e tudo mais, sentado na varanda, o vento tentando me consolar acariciando meu rosto, não conseguia deixar de pensar:
Só, sem ninguém. Sem familia. Nem mulher e nem filhos.... Se ao menos nunca tivesse tido nada disso.
Porque Deus nos dá as pessoas, deixa-nos amá-las e depois nos toma como se nunca tivessemos tido direito 'a elas? (Era revolta pura, afinal Deus é amor e não tem nada a ver com isso. Mas na hora, foi o que pensei).


Era Natal,
Acordei num hospital depois de ter desmaiado bebendo um litro de vodka rindo e chorando pelas ruas vazias e acinzentadas da cidade.
Médicos com sono, enfermeiras de horrível humor, atendimento péssimo, atenção mínima. É que era o SUS, e era Natal.


Comecei a rir sozinho, ria feito um louco (é que talvez começasse a perceber o que ainda não bem sabia).
Calaram-me com uma injeção tipo "sossega leão".
Cada vez que acordava, ria de novo. Gargalhava.
Ai vinha outra injeção. Depois mais outra.
Tantas que nem me lembro.


Os dias passavam e eu não sabia.
Numa das vezes que estava saindo do "transe alopático" percebi que o quarto estava cheio.
Tinha uma pessoa que dizia ser minha mulher. Mas não era. A minha havia morrido certa vez sem ter porque, e deixado algo parecido em seu lugar, que andava como ela, falava igual a ela, mas não era.
Um certo primo do qual nem mais me lembrava gritava com o tal doutor e que advogado que era, iria processá-lo por negligência e erro médico.
Dizia que tinha tomados doses excessivas de sei lá o que e que estava vivo ainda sei lá porque.
Alguém ao meu lado cochichava com outro minha triste sina e contava sobre um caso em que quatro bandidos perseguidos pela polícia, fantasiados de Noel e anões, foram fuzilados dentro de um carro na noite de Natal, e que junto morreram três inocentes crianças, talvez reféns de um plano qualquer, sendo o maior com cinco anos.
Dormi.


Depois eu não me lembro bem, disseram que tinha crises de violência, vieram choques, camisa de força, jatos d'agua.
Já fazem 3 anos.
Dizem que sou louco. Não acredito.
Mas fico por aqui. Não tenho para onde ir. Não tenho porque sair.
Vivo só. No meu mundo. Com meus pensamentos.
Sou sustentado não sei por quem, não me visitam. Também não quero.
Está bom assim. Talvez isso seja a loucura. Entender e conviver com o destino sem querer mudar.
Mas afinal, para que?
A gente passa a vida toda tentando crescer segundo nossos padrões.
E será que eles são verdadeiros? E se não forem? O que é a verdade afinal?


Mas eu vivo. E vivo para esperar todo ano este dia.
Este dia maravilhoso que me dá forças para viver mais doze meses a fim de vê-lo novamente chegar.
Viví o primeiro para ver, para verificar se realmente aconteceria (é que apesar de já saber, ainda desconfiava).
Aconteceu.
Agora vivo para esperar a próxima vez.
Quando eles vem, e vem.


Ontem deitado só esperava a meia noite, meia noite de Natal.
Quando ela chegou ao sons dos sinos lá fora, eles vieram também.
Na escuridão solitária do meu triste quarto do sanatório, quatro luzes azuis surgiram ao pé da minha cama.
Oh Deus, como amo estas luzes!
Cada uma brilhou produzindo raios que escapando do seu centro, transformaram-se em membros, tronco e cabeça, delineando-se em pernas, braços, mãos e enfim corpos perfeitos.
Então eles me olharam, sorriram, disseram que me amavam, cantaram para mim ao som dos sinos que batiam.
Como sempre, prometeram vir no próximo ano.
Havia um sorriso sincero em cada um.
Os quatro.
Papai Noel,
e seus novos três anões,
meus filhos.
Era Natal.

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